
Apesar de não ter vindo de uma família rica, nunca me faltou nada na vida, desde a posse de bens materiais até o acesso à educação e à informação. Assim como todos que estudaram comigo ao longo de pelo menos 10 anos, em uma boa escola particular construtivista com preocupação na formação social do indivíduo, fui criada em um ambiente aberto a debates e trocas de idéias, onde inclusive visitas a assentamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra estavam entre as atividades da grade curricular. Era o que hoje chamo de “classe média consciente” – com um certo tom pejorativo na frase -, mas que teve um peso definitivo na formação da minha personalidade.
Mas, em um determinado momento, por volta dos 14 anos, esse caminho “livre da alienação” que eu seguia mudou o modo do curso. Enquanto todos os meus colegas começavam a firmar suas personalidades em um mundo à base de MPB, Chico Buarque, maconha e arte, nada daquilo fazia muito sentido para mim. Foi aí que eu fui atrás, junto com duas amigas -que imagino terem entrado na mesma crise que eu - da tal da cena punk/hardcore. Uma identificação adolescente, em busca de afirmação e identidade, mas que, sem sombra de dúvida, influenciou tudo o que sou hoje.
Para quem vive dentro dessa cena, esse papinho de “o punk mudou minha vida” já é batido, clichê e chega até a dar canseira. O assunto não é nem tanto o encontro das pessoas com o punk, mas a influência e o peso desses ideais na vida de quem os tomou para si. O motivo que me fez trazer esse assunto à tona foi a seguinte afirmação, que li por aí dia desses:
Existem tantas preocupações na vida. Ela é tão mais importante do que esse mundo do Hardcore, de bandas de final de semana, de fanzines mal escritos e ideologias políticas ultrapassadas. Isso passa, a maioria vai desencanando e levando a vida de outra forma. De volta ao mundo real onde temos que trabalhar pra pagar contas, estudar para ter um futuro e puxar o saco do chefe porque ele sim é quem vai te ajudar.
Não vou entrar na discussão do que é o “mundo real”, capitalista, em que temos que trabalhar e pagar contas. Essa é uma realidade que qualquer pessoa que vive em uma sociedade do capital enfrenta em algum momento da vida. A diferença está nas diversas formas encontradas para sobreviver à lei da selvageria – ou pelo menos não sucumbir a ela. E é neste ponto que o punk entra. É neste ponto que ele faz sentido. E muito.
É lógico que tenho não uma, mas muitas e muitas críticas quanto ao que acontece dentro desse mundo “paralelo”, seja em relação a bandas, pessoas, comportamentos de grupo ou qualquer outra coisa. Mas nenhum desses problemas tira a essência de um ideal e a validade prática que ele tem. E, muito menos, anula o esforço de muitas pessoas que lutam para manter a coisa toda minimamente digna.
As bandas tocam aos finais de semana porque não há outro dia disponível para isso, afinal, a maioria das pessoas trabalha para pagar suas contas.
Os fanzines podem até ser mal-escritos, mas passam mensagens, idéias, críticas, analisam e questionam o mundo, oferecem informação e são a alternativa a tudo aquilo que pode se chamar de grande mídia. O fanzine é o meio de comunicação de um grupo, que não sofre censuras, não tem meias palavras e se importa em ser livre. Acima de qualquer preocupação lingüística e gramatical, preocupa-se com o fluir das idéias.
Algumas ideologias políticas podem já não ser totalmente adaptáveis à sociedade atual, mas nunca serão ultrapassadas. Talvez a maneira de se implementar na prática determinadas ideologias deva ser mudada, mas jamais princípios como liberdade, dignidade e respeito serão ultrapassados. E são eles que regem uma atitude punk.
Para muitas pessoas, tudo isso passa. Muitos desencanam e levam a vida de outra maneira porque, de alguma forma e por algum motivo, isso tudo não fez mais sentido. Opção pessoal. Mas nunca um ideal como o que vive na cena punk/hardcore, pode ser encarado como coisa de criança, como momento passageiro. Tenho amigos que já passam dos 30 anos de idade, outros até dos 40, que são muito mais punks que muitos jovens por aí. Que levam tudo isso a sério. Que aplicam em sua vida diária princípios como o faça-você-mesmo ou o próprio anarquismo. Pessoas que gerem seus próprios espaços, vivem da autogestão, mantêm suas bandas fazendo as próprias camisetas, gravando os próprios cds. Realizam eventos onde der, debates com quem estiver presente, exposições de arte com as condições existentes, fanzines com o dinheiro disponível… Mantêm uma atitividade incessante, possibilitando todo o funcionamento desse mundo “paralelo” e “alternativo”. Sem precisar do chefe para ajudar em coisa nenhuma. E são muito felizes assim.
O punk é a fuga daquilo que oprime, é o outro lado da moeda, é a alternativa ao mundo grotesco. É por isso que faz sentido. Só é coisa de criança para aqueles que nunca o entenderam.