sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Abaixo a Ditadura do Genital!

Transexuais lutam para deixarem de ser prisioneiros do próprio corpo e vítimas da estigmatização

Bárbara Graner é loira, alta e veste um vestido estampado. Tem olhos claríssimos e um sorriso que brota com a maior naturalidade. Na cabeça, óculos de armação grossa e branca nos conduzem imediatamente à imagem das heroínas dos anos 60, feministas que lutaram pelos direitos da mulher. Bárbara se considera uma feminista e, além de tudo, luta por outras bandeiras. Hoje, seu maior desejo é ser reconhecida como mulher, mas diferente “daquele arquétipo feminino da Amélia dos anos 60”, explica a transexual, que – contrariando as crenças do senso comum – não é profissional do sexo, mas sim educadora. “Hoje participo de projetos voltados à formação técnica de profissionais da educação para que eles possam multiplicar o conhecimento acerca da identidade de gêneros e da transexualidade, inclusive no âmbito escolar”, conta ela, que começou sua carreira profissional como agente de saúde comunitária tratando DSTs.

Sem rótulos - A vontade de “se transformar” - no jargão trans – sempre existiu: “Eu me lembro que aos 5, 6 anos, imaginava que uma fada-madrinha fazia ‘plim’ e o meu órgão se transformava. Aos 14, ganhei o livro Conversando Sobre Sexo, da Marta Suplicy. Quando li a definição de transexual, tive duas alegrias ao mesmo tempo: descobri que a cirurgia já existia e que eu não era única no mundo.” E, de fato, não era.

Ela, assim como muitas outras, é vítima do preconceito, que continua pautando o senso comum, pois a transexualidade – e não o transexualismo, pois o prefixo –ismo é associado à patologia, explica o antropólogo Jorge Leite Jr. – é freqüentemente confundida com homossexualidade ou travestilidade. Bárbara, porém, não tem dúvida: “Eu sou mulher, gosto de chocolate, de cinema, sou ativista de movimentos sociais e, dentre todas essas características, sou transexual.” Ou seja: sua identidade de gênero é feminina, e ela nasceu “com alguma coisa a mais”. Rafaelly Domingues, 21 anos, que também é trans, esclarece que “transexual não significa não possuir mais o seu órgão sexual de nascimento, mas ter a mentalidade de mulher”.

Biopoder - Jorge Leite Jr., antropólogo que começou a participar de reuniões da Associação da Parada Gay após concluir sua tese de mestrado sobre travestis e pornografia, também está intrigado com a discussão da identidade de gênero: “Baseado em quê podemos dizer se a pessoa é homem ou mulher? A roupa, o corte de cabelo e todo um arcabouço cultural é que vão definindo esses papéis. A nossa cultura ocidental é que criou o conceito de dois sexos opostos.”
Essa visão oclusa e maniqueísta da sociedade faz com que muitos transexuais tenham seu direito à cidadania constantemente violado. Para conseguir alterar sua documentação, por exemplo, dependem de uma jurisprudência ou, em última instância, da “boa vontade do juiz”, opina Graner. “Não temos nenhuma lei que garanta essa alteração de nome [após a cirurgia]. O que nós temos hoje são algumas transexuais que conseguiram mudar sua documentação com um bom advogado e um juiz que teve uma avaliação pessoal favorável”.

A ilusão de autonomia sobre o próprio corpo configura o fenômeno denominado por Foucault de “biopoder”, que diz respeito ao desejo do Estado em manter o indivíduo saudável, estável e sob controle como forma de reafirmar e ampliar sua própria autoridade. “Na nossa cultura, o Estado diz que você não pode usar droga, não pode se suicidar e, se for mulher brasileira, não pode abortar”, explica Jorge, que acredita que a submissão aos “homens de branco” para conseguir mudar de sexo é mais um exemplo da noção de biopoder.

A Cirurgia – No dia primeiro de dezembro de 1952, Nova Iorque foi sacudida pela notícia de que George William Jorgensen, Jr. – estudante da Universidade de Colúmbia e soldado do Exército, a partir de 45 - havia se transformado em Christine Jorgensen. O nome foi escolhido em homenagem ao seu cirurgião, o dinamarquês responsável pela realização da primeira cirurgia de redesignação sexual (CRS - Sex reassignment surgery – SRS, em inglês), Dr. Christian Hamburger. Em 1953, quando retornou à Nova Iorque, sua cidade de origem, Christine já era uma celebridade.

A primeira operação feita no Brasil foi realizada pelo médico Roberto Medina em 1971. Naquela época, em que os padrões morais eram ainda mais retrógrados e a transexualidade era um tabu, a prática foi tida como criminosa, o que culminou em um processo contra o médico, que foi acusado de mutilação. Assim, a cirurgia de transgenitalização (como também pode ser chamada), assim como as pesquisas nessa área, ficaram sendo proibidas até o ano de 1997, quando Roberto Medina entrou com recurso na justiça e venceu, conseguindo com que a prática da operação fosse legalizada no país, mas apenas em hospitais universitários e em caráter experimental. Em 2002, devido ao êxito alcançado, as cirurgias de transgenitalização do sexo masculino para o feminino (MtF) deixaram de ser consideradas experimentais, enquanto que as do sexo feminino para o masculino (FtM) ainda se encontram em caráter experimental.

Hoje, para realizar a operação, é necessário passar por uma vasta avaliação e por um acompanhamento médico que, dentre outras coisas, respeitem as normas estabelecidas pelo Conselho Federal de Medicina. Os médicos baseiam-se em um formulário-padrão organizado pela Associação de Disforia de Gênero Harry Benjamin, que define que há seis níveis de transexualidade, e “as variações vão desde o simples prazer de se vestir como mulher, até a pessoa que tem total repulsa com relação ao seu órgão sexual”, explica Jorge. E, para a realização da operação, é necessário que o paciente esteja enquadrado, impreterivelmente, do quinto para o sexto nível. Porém, Bárbara, que esteve na fila do Hospital das Clínicas para a realização da cirurgia de 1993 a 1999, mesmo ainda com o desejo de realizar a operação, decidiu não fazê-la, após questionar o preparo dos profissionais que iriam realizá-la: “Nós estamos diante de uma máfia de branco. Eu não tenho poder de participar de uma decisão que vai afetar a minha vida, meu organismo. Como você vai utilizar uma equação matemática para definir a sexualidade de uma pessoa?”. E ainda completa: “Há diferenças entre as transexuais, assim como há diferença entre duas mulheres, mas isso não significa que uma seja menos mulher do que a outra”. Segundo ela, além de não participarem de nenhum preparo psicológico para tratar do assunto, os médicos são mal informados quanto à situação das transexuais e, ainda por cima, tratam do assunto como algo estritamente pragmático, o que é um problema quando estamos lidando com seres humanos: “Nós temos subjetividade”. Jorge comenta que, inclusive, já houve casos de uma transexual não conseguir realizar a operação pelo fato de andar de moto.

A utilização deste formulário-padrão acaba se tornando um problema na medida em que, com a necessidade de rotular subjetividades, acaba por fazer com que as próprias transexuais tentem manipular os médicos para atingir sua meta. “Espera-se que a pessoa diga que sempre quis mudar de sexo, que sinta nojo com relação ao seu sexo”, explica Jorge. “A gente às vezes é obrigada a usar esse tipo de discurso para conseguir a cirurgia”, confirma Bárbara. Jorge confirma: “já que os médicos têm tanto poder sobre elas, elas falam o que eles querem ouvir”.

Teoricamente, os médicos acompanham as pacientes por dois anos, tempo em que julgam suficiente para analisar as questões exigidas pelo formulário e, segundo o antropólogo, “isso é superestimar a capacidade dos médicos e de subestimar a determinação dos transexuais”.

Passo a passo - Além do preparo psicológico e hormonal ao qual é submetido o paciente, a cirurgia de redesignação sexual, que para ser realizada deve ser aprovada pelo Conselho Federal de Medicina, é um tanto quanto complicada e só pode ser praticada em maiores de 21 anos e até os 65 anos de idade, em média.

No caso da cirurgia Male to Female (MtF), o processo consiste na retirada do pênis e do saco escrotal e na criação do túnel perineal, que futuramente abrigará a vagina. A partir do saco escrotal são construídos os lábios vaginais. A pele do pênis é utilizada para o revestimento do túnel perineal e o clitóris é reconstruído com parte da uretra que tem alguma sensibilidade, o que possibilita que a pessoa operada sinta orgasmos em suas futuras relações sexuais. Essas relações só poderão ocorrer, em média, dois meses após a cirurgia e sempre com o uso de lubrificantes, pois a neovagina não é capaz de produzir lubrificação natural. O fato de passar pela operação de transgenitalização não significa que a pessoa passará a produzir hormônios femininos. Mesmo após a cirurgia, é necessário que o paciente continue tomando hormônios femininos, que influem, entre outras coisas, na mudança da voz.

Já o caso da cirurgia FtM é mais complicado. Há a reconstrução do órgão sexual, denominado neofalo, com o auxílio de implementação de uma prótese, além de remoção dos seios e, em alguns casos, lipoaspiração. Porém, este tipo de operação ainda não é considerada totalmente satisfatória, na medida em que há muitos problemas de ereção e também na qualidade estética.

Apesar de cada vez mais estar aumentando a prática dessas cirurgias, elas ainda têm suas contra-indicações, e Rafaelly, que ainda não passou pela operação, deixa o alerta: “Cortar um órgão sexual é como cortar um dedo: irreversível. Por isso deve-se pensar muito antes de realizá-la”.

Filhas da Noite - A falta de oportunidades na sociedade faz com que travestis, em sua maioria, tenham que se prostituir para sobreviver e conseguir realizar, caso desejarem, a cirurgia de transgenitalização. “Por causa do preconceito, o mercado de trabalho é restrito e ainda tem travesti que fica com vergonha de sair na rua. A prostituição é a forma mais fácil de uma travesti conseguir fazer o corpo”, explica Rafaelly. “Aqui no Brasil, as travestis estão fortemente ligadas à marginalidade e à prostituição”, diagnostica Jorge.

Para debater questões em torno da identidade de gênero das transexuais e travestis, além de pleitear a criação de políticas públicas que viabilizem a inclusão desses segmentos na sociedade, foi criado o Fórum Paulista de TT (travestis e transexuais) que começa a incorporar os transgêneros. “O fórum surgiu a partir de demandas e o segmento, que incluiu representações de outros Estados, se tornou protagonista”, afirma Kika Medina, diretora . “São Paulo é a maior cidade da América Latina e ainda não temos políticas para travestis e transexuais”, afirma Fernanda de Moraes, organizadora do SETRANS (Seminário Paulistano de Debates para Transexuais e Travestis). O Deputado Federal Paulo Teixeira, é um dos comprometidos com a causa do movimento. Em seu site (www.pauloteixiera13.com.br), ele promete analisar alternativas que tratem com dignidade transexuais e travestis, facilitando a mudança do prenome e possibilitando a carteira com o nome social, uma das principais reivindicações das transexuais.

A importância do documento feminino

O depoimento da irmã de uma transexual que não deseja se identificar e que sentiu diariamente as dificuldades vividas por ela

"Depois de transformada, mesmo antes da cirurgia, o que mais limitava minha irmã era a documentação masculina. Cansei de ir com ela a médicos, dentistas e bancos acompanhadas de algum amigo ou namorado (ultimamente o marido dela), pra que ela não passasse pelo constrangimento total de que alguém a chamasse pelo nome de registro masculino e ter que se levantar pra atender.

Levávamos um homem com a gente, para o caso de que, se chamassem pelo nome masculino, o nosso amigo a acompanhava e quase ninguém percebia. Mais tarde passamos a conversar com os atendentes para que eles chamassem pelo nome feminino que ela usa, mas sempre havia um que esquecia e acabava chamando pelo nome masculino na frente de todo mundo! Que raiva que a gente tinha!

Lembro de um dia em que ela foi fazer um exame e havia uma sala de espera cheia de gente. Como não tínhamos arranjado nenhum amigo para ir junto, pedimos para a atendente chamar pelo nome feminino e ela concordou. Sentamos naquela sala lotada de gente e qual foi a nossa surpresa quando a moça chamou bem alto pelo nome masculino! Eu imediatamente falei baixinho para minha irmã: “Não se mexa. Eu vou lá falar com a atendente!”. Fui lá e falei um monte para a atendente. Minha irmã é tímida, mas eu rodo uma baiana legal!

Se os legisladores pudessem sentir na pele o que passa uma transexual ou um transexual na hora em que tem que atender pelo seu nome de registro, em público, imediatamente criariam uma lei pra não permitir esse constrangimento.

A sentença de mudança de nome e sexo da minha irmã saiu recentemente. Comemoramos com uma festa. Agora ela se sente livre e completa."

Não confunda. Tire sua dúvidas sobre todos os T´s.

Travesti: é uma pessoa que possui sua identidade de gênero oposta ao seu sexo biológico, mas não deseja passar pela cirurgia de redesignação sexual. Os travestis não possuem uma orientação sexual fixa, podem ser homossexuais, heterossexuais, bissexuais e assexuais.

Transexual: é a pessoa que possui sua identidade de gênero oposta ao seu sexo biológico; aquela que nasceu com o órgão sexual masculino mas se identifica como sendo uma mulher ou vice-versa. O que define sua identidade de gênero não é o sexo biológico, mas como a pessoa se percebe. Independentemente do sexo biológico, do papel e da orientação sexual, o que define um transexual é que seu corpo é de um sexo e seu cérebro é de outro. Os transexuais desejam passar pela cirurgia de redesignação sexual, que consiste na transmutação do seu órgão sexual biológico para aquele a qual deseja pertencer.

Drag Queen: é o homem que se fantasia do sexo oposto com o intuito de, na maioria das vezes, fazer performances e shows profissionalmente. Muitas vezes as drag queens podem ser homossexuais, porém sua orientação sexual não é fixa; elas podem ser bissexuais, assexuais e até mesmo heterossexuais. A mulher que se fantasia de homem é chamada de Drag King.

Transgênero: termo aplicado a indivíduos cuja tendência é divergir de seu sexo de nascença (identidade de sexo) e seu papel social. Os transgêneros costumam não se fixar em apenas um sexo, comportando-se ora como homens, ora como mulheres.

Essa matéria foi realizada por Haidi Lambauer e Luísa Bittencourt

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