sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Caro Gregor


Não me admira a sua resiliência. Afinal, quem em sã consciência optaria por lutar contra aquilo que chamamos destino? Seguir outro caminho demandaria mais do que coragem, exigiria uma força que, apesar de potente, nos é roubada todos os dias.

Por isso, Gregor, sua resiliência não me causa espanto. Assim temos sido, todos nós. Ser de verdade, cumprir nossa missão humana de apenas sermos, exige a nossa negação ao espetáculo. A farsa da sociedade humana é atemporal, enquanto seres de kronos, do espaço. A tragédia só é bela quando encenada no palco.

E assumir sua tragédia, Gregor, te faria humano demais. A tarefa de ser humano exige humanidade, forma essa que optamos abandonar para estar em conformidade com o olhar estrangeiro, o olhar inquisidor. E não estou aqui sendo inquisidora. Pelo contrário. Estou aqui falando como alguém que vinha atuando no palco da vida sem perceber o papelão que assumia. Virando um personagem sem caráter. Alguém que atuava para ser aplaudida. E era isso que você almejava, querido Gregor.

Só que para ser realmente humano, deve-se ter em mente que não há aplausos no fechar de cortinas. Porque também não há cortinas a serem cerradas. Ser humano é ter a coragem de se assumir fraco, maldoso, egoísta, invejoso. É assumir, Gregor, que sua metamorfose talvez não fosse completa se seus pais não figurassem na sua tragédia. A morte é muitas vezes solução, Gregor.

Não pretende com essa carta lamentar seu fim deprimente, Samsa. Você foi seu próprio dramaturgo. Busco aqui apenas respirar um pouco do ar sujo da humanidade, antes que eu morra como uma barata.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

girassol

Acho que foi quando falamos sobre o sofrer e o criar. Muita dor havia passado, daquelas dores de morrer e matar mas de gerar paisagens e letras duras e belas. E a gente acreditava que era preciso sangrar para o mundo sentir que existíamos. E foi aí que eu senti que você passou a existir no meu mundo de montanha russa e eu fui aos poucos e com desconfiança existindo no seu universo de girassol que não cessa de girar. Não foi simples e perfeito assim, a garotinha da praia sempre muito atenta e já farta de levar talhos no coração andava descrente e assustada. E aquele cara hoje doce e que agora sorria um sorriso tímido e curioso, já havia deixado a garotinha assustada no passado. Era uma casca dura de quebrar. Mas a cada olhar atento e brilhante, a cada gesto de flor, a cada abraço de insegurança mas profundo no entanto, uma armadura que vivia dura aqui dentro pôde ser colocada de lado. Ela nem imaginava que esse encontro do acaso poderia ter tanta verdade contida nele. Mas a cada dia busco aprender a criar na alegria cor de sol que você me traz.

guardado

Aquele respirar que preenche o espaço de amor contido e sufocado porque pra fora ele não pode abrir, é pra dentro que foi-lhe permitido viver, pois pra fora ele pode crescer demais e quebrar as paredes que lhe servem de estrutura para que não saia do controle, controle que ela jurava ter, mas só se guardado lá dentro pra que ninguém visse, ouvisse ou notasse, pra que ele não existisse no mundo depois de pronunciado, pois o mundo só virou mundo quando fez-se o verbo e se a palavra for dita e o verbo conjugado, amor vira morrer e deixa de ser a criança asmática cheia de medo que em vez de falar de amor quer pedir socorro.