terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Tropa de Elite: osso duro de roer

É de se notar que o cinema nacional tem crescido vertiginosamente nos últimos tempos. Há poucos anos, cinema nacional era sinônimo de baixo custo de produção, lucro quase zero e uma qualidade técnica que deixava a desejar frente às grandes produções hollywoodianas. No Brasil, incentivo ao cinema praticamente não existia. Porém, este cenário vem se reestruturando de uma maneira não vista antes ao longo dos anos, com a produção de filmes que atingiram bons números de bilheteria e alcançaram uma qualidade conceitual e técnica significativa, dos filmes independentes aos comerciais. Dois Filhos de Francisco, dirigido por Breno Silveira, talvez tenha sido uma das primeiras surpresas nacionais em termos de indústria cultural. Hoje, o filme da vez é Tropa de Elite, de José Padilha. Um filme que não só atingiu recordes de bilheteria, como talvez tenha sido o mais falado, debatido e pirateado da história do cinema nacional.

Em termos cinematográficos, Tropa de Elite não tem nada de inovador. Não surpreende com efeitos especiais, não possui uma montagem fora do padrão e não inova no tema, já que filmes que falam de morro, polícia e traficantes no Rio de Janeiro são o que há de mais clichê no Brasil. Dessa maneira, onde é que reside o mérito de um filme de tão estrondoso sucesso? Exatamente nessas mesmas características já citadas. Tropa de Elite tem tudo aquilo que se é esperado de um filme, não traz surpresas e muito menos questionamentos: é uma produção que se baseia na violência em seu estado puro, e não mais do que isso, para contar uma história que possui uma densidade e uma complexidade que vão muito além da simples descarga imagética de cenas chocantes e violentas. Um dos maiores erros cinematográficos é “falar da violência utilizando a violência”. Talvez o filme pudesse ter alcançado o status de obra artística caso trabalhasse o tema utilizando uma outra linguagem, que não a própria violência.

É o que faz o menos conhecido e de infinita superioridade, Notícias de Uma Guerra Particular. Vendido como Tropa de Elite 2, o documentário dirigido por João Moreira Salles e Kátia Lund em 1997, foi um dos principais braços de apoio de José Padilha para desenvolver Tropa de Elite. O personagem de Wagner Moura, o “herói” capitão Nascimento, surgiu baseado no capitão Pimentel – o verdadeiro capitão do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) que presta depoimento em Notícias. O documentário, além de discutir o tráfico, a polícia e - o que não faz Tropa de Elite -, dar voz aos moradores do morro que vivem nesse fogo cruzado, consegue discutir tudo isso criticamente e sem usar cenas de violência em nenhum momento. Não há sangue, não há tortura. Partindo apenas de depoimentos, é um filme que consegue chocar ao mesmo tempo em que desenvolve o senso crítico. Sem sangue.

Se existe algo de correspondente entre os dois filmes, excetuando-se o tema e o fato de um ser baseado no outro, certamente não é a maneira como é retratado o embate entre o tráfico e a polícia, mas somente o fato de concordarem que o que se vive nos morros cariocas é um estado de exceção. Segundo Giorgio Agamben, o estado de exceção “não é um direito especial (como o direito de guerra), mas uma suspensão da própria ordem jurídica”, ou seja, ele se configura quando não está em vigor nem o estado de Lei (onde as normas valem) e nem o estado de guerra. O estado de exceção é um “regime da lei no qual a norma vale mas não se aplica, e atos que não possuem o valor de lei adquirem sua força”.

Os dois filmes analisados aqui mostram um panorama desse estado que, cada vez mais, se configura e se fortalece nos morros do Rio de Janeiro. É um estado de guerra instituído dentro de um estado de direito. Sabe-se que lá, o Estado (governos federais, estaduais ou municipais) tanto não entra quanto não tem o menor poder. As leis que estão em nossa Constituição e que nos fazem sentir protegidos de certa maneira, não têm o menor valor dentro desses territórios urbanos. É o que os filmes mostram: um tráfico que impõe suas próprias regras e uma polícia que o faz da mesma maneira, gerando o atual conflito. Tanto os traficantes quanto a polícia e o BOPE suprimem qualquer direito (principalmente humano) e instauram a violência generalizada e a matança indiscriminada, que se tornam a lei do morro.

Em Notícias de uma Guerra Particular, o surgimento do estado de exceção nas favelas é mostrado, mas, diferentemente de Tropa de Elite, ele é criticado como algo que deve ser abolido. O BOPE, por meio do capitão Pimentel, aparece como mais uma parte do problema da guerra do tráfico, e não como uma solução. Já Tropa de Elite surge como um filme legitimador do mesmo estado de exceção. O BOPE e o capitão Nascimento são os símbolos da legitimação desse estado, mostrados não como problema, mas como solução. O combate ao crime necessita do capitão Nascimento. Está aí o ponto crucial que diferencia esses dois filmes, aparentemente tão similares: enquanto um aparece como crítica social, o outro surge como um espetáculo legitimador da violência.

Deslocando a análise para um viés político, ainda segundo Giorgio Agamben, os governos de democracias contemporâneas incorporam “atuações que legitimam a violência, a arbitrariedade e a suspensão dos direitos, em nome da segurança, a serviço da concentração de poder”. Ou seja, os Estados deslocam uma “medida provisória e excepcional (o estado de exceção) para uma técnica de governo”. Tropa de Elite se situa exatamente nesse patamar: um filme que afirma a prática da repressão, em nome da segurança, como solucionadora de uma crise social. O filme acaba sendo uma seqüência de imagens espetaculares, violentas e chocantes, encadeadas de maneira a não despertar nenhuma consciência crítica, e sem aprofundar o contexto denso e complexo que abarca uma situação como a guerra do tráfico.

Em contrapartida, Notícias de Uma Guerra Particular não só apresenta essa complexidade, como aponta negativamente para esse estado de exceção instituído. O depoimento de Hélio Luz, chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro na época da realização do filme, afirma a existência da prática repressiva sem apresentá-la como algo que deva ser aplicado, mas como um dado concreto: “Nós fazemos uma política de repressão em benefício do Estado, em proteção do Estado. Mantemos os excluídos sob controle”.

Em resumo, dois filmes que pertencem à mesma natureza, um servindo de inspiração para o outro, acabam por se distanciar até chegarem a se contradizer, devido ao modo como foram construídos. Tropa de Elite poderia, sim, ser um bom filme que despertasse a consciência crítica do espectador. Mesmo partindo apenas do ponto de vista de um policial, toda sua montagem poderia ser crítica caso não fosse uma ode à violência. Notícias de Uma Guerra Particular, mesmo sendo documentário, prova que isso é possível, sem tom sensacionalista, enquanto que Tropa de Elite prima pela qualidade de imagens violentas. E desnecessárias.

2 comentários:

Rebeca H. disse...

sexo e violência são imagens-chave de calibre... de novo, parabéns pelo brógui...beijo

Anônimo disse...

Oi Lu!

Tinha até esquecido que isso era trabalho do Mieli. Só percebi quando vc citou o Giorgio sei lá das quantas. Aí percebi que fiz praticamente a mesma coisa que você: citei meia dúzia de frases do cara, sobre estado de excessão e o resto todo reflexões sobre os dois filmes...

Mas tá fodão o seu texto, como sempre. Só umas colocações:
o Tropa de Elite não se propunha a cutucar a ferida. Era um sucesso pré-fabricado. O Padilha já provou que sabe fazer documentários. Se ele quisesse, não tenho dúvidas que faria uma excelente abordagem do tema, bem a la "Notícias de uma Guerra Particular". Mas ele preferiu deixar a coisa mais vendável, com uma linguagem publicitária que não exige maiores reflexões. Sei lá, acho que o cara faria muito mais do que fez. Mas há interesses, há dinheiro, há patrocínio... Tanta coisa no meio...
Porque "Notícias" não fez o sucesso que "Tropa de Elite" fez? É triste, mas é lógico que o filme foi feito para vender.

Boas férias, Lu!

Beijão